“O Efeito Chuveiro: Quando a Escola Represa a Dor em Vez de Lavar a Alma”
Por João de Loyola
Meus caros amigos comecemos com um conto verdadeiro.
Na semana passada, um aluno de 16 anos, que chamarei de Irlan, saiu da aula e se trancou dentro de um armário da escola. Foi encontrado tempos depois pela gestão e saiu do armário, rindo. Mas não era um riso infantil. Era zombeteiro, quase cínico. Quando professores e a equipe gestora tentaram conversar, o riso cedeu espaço a uma frieza ameaçadora. Retrucava com raiva, olhava com desprezo. Não era um animal acuado. Era um predador no habitat da impunidade, não estava ali pelo ato infante, mas pelo conjunto da obra, pelos inúmeros relatos oficiais de indisciplina e ato infracional, e esse era apenas mais um.

A mãe, presente na reunião, chorava o fracasso da criação. Sabia que o filho se iniciava no mundo das drogas, todos ali sabiam, ele não ligava e até se vangloriava disso com seus colegas, tinha em si que o herói era o pai ausente para a família e escola, e presente para ele: um traficante que visita de vez em quando, mas cuja palavra pesa mais que todas as tentativas educacionais da escola e da mãe, ali triste e chorosa. Quando o nome do pai foi citado, Irlan chorou. Foi o único momento de fragilidade. Tudo o mais era couraça. Um menino velho demais para brincar, mas novo demais para odiar com tanto afinco.
E a escola?
Bem, a escola fez o de sempre: notificou, acolheu, encaminhou. Cumpriu seu protocolo de escudo. Como um chuveiro em dias frios: molha a cabeça, mas não lava a alma. É um sistema que repete conteúdos, estimula presenças, entrega apostilas, promove com força o uso de plataformas digitais, mas não toca a parte viva do ser humano. É tão difícil assim entender que a alma, meus caros, não se educa com planilhas.

Em contextos periféricos, essa distância entre o mundo simbólico do aluno e o universo burocrático da escola vira abismo. A escola acha que está educando quando na verdade está apenas promovendo comportamentos que são resultados de estímulos ambientais na linha binária do gosto ou não gosto. Não forma. Contorna. E o jovem como Irlan saca isso rápido: percebe que está num lugar que até tenta ser a autoridade em ensinar, mas é apenas um conjunto de bons docentes que só prestam para servi-lo como sempre e isso desde a educação infantil. Sim! Para muitos “Irlans” somos apenas “servidores do público” e a mãe, bem, talvez uma mulher que tenha a simples obrigação de lhe prover o sustento, uma simples ama de leite, uma mucama que teve o desplante de fugir de seu sinhozinho, e a petulância de dar tudo, menos o pai, o rei de um mundo de violência e crime. Você percebe amigo leitor onde está a educação, os mais românticos dirão “Não é bem assim Loyola, você está sendo trágico demais” pode até ser, mas me diga onde não estou com a razão.
O caso de Irlan é uma metáfora viva do que se convencionou chamar de “escola cuidadora”. Mas cuidar é mais do que oferecer merenda e afeto superficial. É preciso oferecer outra narrativa, a de uma escola educadora em que o aluno vá para estudar. Uma que concorra de verdade com o mito do pai traficante. Uma que o ajude a deixar de ser um adulto improvisado em corpo de menino.
A ONU fala em quatro pilares: Conhecer, Fazer, Conviver e Ser. A maioria das escolas da periferia brasileira mal arranha o primeiro. E o mais trágico: acha que basta isso. Que notas boas e ausência de ocorrências disciplinam, transformam, redimem. Que engano. Estão confundindo silêncio com escuta, e ordem com acolhimento.

Irlan não é exceção. É um reflexo. Uma superfície onde o sistema escolar, se tiver coragem, pode ver seu fracasso refletido com nitidez. A solução não está em puni-lo. Está em entender que enquanto a escola oferecer apenas o chuveiro frio da repetição, da presença obrigatória a troco 200 mirréis, nas notas por acesso digital, ele continuará sujo da lama do mundo que o criou. Os Irlans não terão escolhas, serão apenas mais um menino preto , pobre e ignorante aspirando ser rei do mundo que todos abominam.
A escola precisa de coragem para descer do pedestal do conteúdo e sujar os pés no chão da existência. Só assim poderá lavar o que realmente importa: a alma.
Vamos continuar a bater esta roupa na pedra na beirada do rio como foi feito por 300 anos, ou vamos encarar uma máquina de lavar almas no século 21?
Texto – João de Loyola
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